“Educadores são amadores no duplo sentido da palavra, porque amam o que
fazem e porque nunca estão prontos”, declarou o filósofo e professor
Mario Sergio Cortella, durante palestra na Semana Pedagógica do Centro
Universitário Curitiba (Unicuritiba), no início deste ano, na capital
paranaense. Com base nessa ideia, Cortella, que é professor-titular na
área de Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), onde atua desde 1977, defende que é essencial a humildade
pedagógica na prática docente, sobretudo no século 21 – quando a
velocidade das mudanças faz com que os alunos sejam diferentes a cada
ano, exigindo uma formação contínua e permanente.
Mario Sergio Cortella é doutor em Educação pela PUC-SP e teve como
orientador de sua tese Paulo Freire, com quem também trabalhou na
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e a quem veio a substituir
na função de secretário em 1991 e 1992. Na entrevista a seguir, o
filósofo expõe de maneira bastante clara e articulada, como em suas
palestras que costumam ser muito apreciadas pelos educadores, suas
ideias sobre temas que vão da sala de aula e políticas públicas à maior
lição que aprendeu com Paulo Freire.
Profissão Mestre: O que é humildade pedagógica?
Mario Sergio Cortella: É uma virtude necessária ao
exercício da prática docente. Humildade não é subserviência, não é
simplesmente abrir mão daquilo que se pensa, se deseja, que se tem como
valor. Mas é não ter uma postura que seja sectária, divididora e ao
mesmo tempo fragmentada dos vários modos das coisas acontecerem no nosso
cotidiano. Portanto, a humildade é a capacidade de percepção de que nós
estamos em formação contínua e permanente dentro da atividade do
magistério. Diriam que isso sempre aconteceu, o que é verdade. O que
mudou hoje é que houve um incremento da velocidade das alterações, o que
exige de nós, cada um e cada uma, na área de educação escolar, uma
atenção maior à nossa formação continuada. E só se forma aquele que sabe
que ainda não está pronto. Isto é, o que é humildade? É saber que você
não é perfeita ou perfeito. Eu gosto dessa palavra porque perfeito em
latim significa “feito por completo”, “feito por inteiro”, isto é,
“concluído”. E um educador sabe que não está perfeito, não está
concluído, não está terminado. Esse é um sinal de humildade que ajuda a
crescer.
Profissão Mestre: Dentro desse contexto, para o professor se
atualizar é fundamental a tecnologia ou existem coisas mais importantes?
Cortella: As plataformas digitais não são inimigas nem
adversárias das plataformas existentes anteriormente. O ensino a
distância, que tanto se fala hoje; a primeira forma de fazê-lo foi por
meio do livro. O livro é um objeto, é uma plataforma de ensino a
distância. Afinal, é com ele que se levava a lição para casa. O caderno
também era. Você estudava em casa, levava para outros lugares, ia à
biblioteca. O que se precisa entender é que é necessário de um lado
afastar a informatofobia, que é esse pânico em relação ao uso do mundo
digital dentro da educação escolar e, por outro lado, afastar a
informatolatria, que é a adoração de tudo que é digital, supondo que
isso resolve as questões em educação. É necessário, antes de tudo, que
eu seja capaz de levar em conta esse mundo digital para usá-lo naquilo
que é a intenção do que se deseja fazer. Muitas vezes se fará usando a
plataforma, outras sem ela. Por exemplo: um jovem, uma criança, brinca
de pique, de correr, de bola e de esconde-esconde, em que não há nenhuma
digitalização, assim como vai até um game, até um Wii [console de
videogame] e à internet, ou seja, se pluga e despluga a partir da
intenção e da necessidade. E o trabalho pedagógico também é isso. Agora,
um professor ou professora não pode, de maneira alguma, afastar o mundo
digital do seu cotidiano, porque o mundo hoje tem isso. Nós
transformamos átomos em bits e fizemos com que houvesse uma alteração do
nosso modo de convivência. Desconsiderar isso é sinal de tolice. Também
cair de braços sem reflexão é outro sinal de tolice. Nem informatofobia
nem informatolatria.
Profissão Mestre: Com a facilidade de acesso aos conteúdos,
cogita-se que o professor possa vir a se tornar um mediador do
conhecimento. Como o senhor enxerga a sala de aula do futuro? O
professor será apenas um mediador?
Cortella: Eu sempre tenho uma reflexão em relação a
essa questão: e quando não o fomos? Quando que nós não fomos mediadores?
Para se supor que nós passaremos a sê-lo, quando nós deixamos de sê-lo?
Supor que um aluno já chegue formado não é algo que faz sentido. Supor
que o professor faça a ponte entre aquilo que ele [o estudante] não sabe
e o que saberá é o que sempre existiu em educação. A grande diferença
hoje é que um professor mais inteligente leva em conta aquilo que o
aluno já sabe para que ele comece a saber aquilo que precisa saber.
Aquilo que Paulo Freire chamava de universo vivencial do aluno, a
leitura do mundo. Não supor que o aluno é apenas um vaso absolutamente
vazio em que se vai colocando coisas dentro. Mas em que momento da nossa
trajetória nós não fizemos a mediação? Sempre, em todos os tempos.
Agora se tem isso com uma atenção maior, porque se valoriza a capacidade
que o aluno carrega. Agora, que nós sempre o fomos [mediadores], não
tenho a menor dúvida.
Profissão Mestre: Falando sobre desempenho escolar, existem
estudos que mostram que o aspecto socioeconômico e a escolaridade dos
pais são mais impactantes do que qualquer outro fator. Levando isso em
consideração, o que sobra para a escola fazer para melhorar o desempenho
do aluno?
Cortella: É preciso oferecer políticas compensatórias
que façam com que a equidade venha à tona. É absolutamente injusto
tratar desiguais de forma igual. Se você tem uma desigualdade que
precisa ser suprimida, é preciso dar um tratamento em que ele tenha um
atendimento especial. E esse especial não significa exclusivo, não
significa privilégio, significa apenas uma atenção maior. Ninguém em sã
consciência proporia, em nome da igualdade, a extinção das UTIs nos
hospitais. Existem algumas situações que são de UTI. Se a gente se
refere na educação ao desempenho escolar, há de fato o impacto forte do
contexto familiar no desempenho dos alunos. Para isso, a escola pública,
que é majoritária em nosso país – representa 87% das vagas que nós
temos na educação básica –, necessita que os governos, nas suas redes,
estruturem projetos pedagógicos que envolvam a comunidade. Ou seja, que
faça com que a comunidade de pais, alunos, professores e funcionários
participe mais ativamente para elevar a condição da própria comunidade.
De nada adianta supor que o aluno isoladamente possa ser avaliado por
algo que não domina se ele não tem uma fonte, uma base anterior. Embora
“a piscina seja a mesma”, na hora de mergulhar e nadar, o modo como cada
um chega até a piscina, mais formado, mais alimentado, mais treinado,
vai fazer com que haja de fato diferença. Por isso, as redes públicas
necessitam criar políticas específicas para que haja a equidade, isto é,
a garantia dos direitos dentro de uma sociedade em que se quer
democracia.
Profissão Mestre: Falando sobre equidade, qual é a sua opinião
sobre políticas de meritocracia, como bonificação de professores, em um
contexto desigual de desempenho escolar?
Cortella: Políticas de meritocracia dessa natureza,
implantadas quando não envolvem uma rede pública, o conjunto dos
docentes, são extremamente perversas, porque criam uma disputa interna e
podem criar a simulação de algumas situações. Um governo que deseje, de
fato, alterar a qualidade da educação que oferece dentro da estrutura
pública precisa ter políticas que não trabalhem apenas com estímulo
monetário exclusivo para um grupo. Avaliação não é auditoria, é
reorientação de processos. Avaliação não é disputa ou concurso. Acho
muito bom, quando se tem um estímulo, fazer com que em uma determinada
escola haja a possibilidade de elevar a condição daquela comunidade pelo
desempenho. Mas, quando isso é feito sem que se ofereça a quem lá
trabalha as condições de formação, isso produz um agravamento da
injustiça. Porque você pode ter, por exemplo, uma escola na área central
de Curitiba ou de São Paulo ou do Rio de Janeiro que tem professores
que são mais formados, já estão na área há mais tempo. Quem não é da
área de educação talvez não saiba uma coisa, mas nas redes públicas um
professor vai escolhendo dar aula nas áreas centrais de acordo com os
títulos e pontos que já tem. Os ingressantes, com menor tempo, com menor
formação, costumam ir para as áreas periféricas. Ora, se você fizer um
sistema no qual haja avaliação nessa sistemática é óbvio que para aquele
que já entrou prejudicado, se não teve condição de ser colocado em um
ponto de equidade, será falho. Por isso acho muito parcial esse tipo de
processo. Avaliação é necessária, mas utilizar avaliação como mecanismo
de remuneração é muito estranho quando você trabalha com rede.
Profissão Mestre: Qual seria então o caminho para a valorização do professor, esse problema que se arrasta há anos no Brasil?
Cortella: A valorização não passa só por governo,
passa pela sociedade geral. A gente tem uma sociedade em que a atividade
da prática docente passou a ser considerada uma atividade secundária,
pouco valorizada. A valorização docente vem, especialmente, por melhores
condições de trabalho, formação permanente e democratização da gestão.
Nesses três polos – democratização de gestão, formação continuada e ao
mesmo tempo melhoria das condições de trabalho – haverá valorização. Uma
valorização que é feita apenas no abstrato, apenas com um discurso que
aparece em períodos de eleição, é uma armadilha tola, na qual quase
ninguém mais tem algum tipo de crença.
Profissão Mestre: Muitos professores e nossos leitores admiram
Paulo Freire. Qual foi uma das lições que o senhor aprendeu com ele no
contato próximo que tiveram?
Cortella: A maior lição que aprendi com Paulo Freire
foi o uso do verbo esperançar. Paulo Freire dizia que é preciso ter
esperança, mas do verbo esperançar. Porque tem gente que tem esperança
do verbo esperar, e esperança do verbo esperar não é esperança, é
espera. Alguns dizem “espero que dê certo”, “espero que funcione”,
“espero que resolva”, isso não é esperança, é espera. Esperançar é ir
atrás, se juntar, não desistir. O que mais aprendi com Paulo Freire foi a
ideia de esperança ativa, que não é da pura espera, mas é a esperança
que procura, constrói, busca e sabe que a atividade docente, acima de
tudo, não é um emprego, é fonte de vida. A gente também tem isso como um
emprego, mas ela é, acima de tudo, uma fonte de vida em que a esperança
é a nossa recusa ao biocídio, a nossa recusa à falência da vida e,
portanto, o nosso modo de existir e esperançar.
Entrevista publicada na edição de junho de 2012 da revista Profissão Mestre.
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